Mas nem mesmo o Sol suporta por muito tempo a situação de abandono que castiga nossa amada cidade. Em suas tardes, geralmente ele chora. Choro gutural de quem muito sofre; lamúria antecipada por ribombantes trovoadas, coriscos aterradores, ventanias... Seu choro, depois desses sinistros sinais, é o aguaceiro que se mistura ao desespero do choro dos desgraçados. Dessa gente que, pela falta de misericórdia e atenção, padece num inferno medonho. Na chuva e nas suas lágrimas, nosso povo esquece o quente Sol e volta ao sofrimento ordinário e no aperto por sob as marquises dos prédios busca proteger-se: encolhe-se, se cobre com jornal, caixas de papelão, restos de trapos, com o que for possível arranjar, e ali dorme, antecipando o sono da paz do túmulo que em horizonte não muito distante lhe acena em calafrios nalgum indigente cemitério... Dorme e vigia na calçada friorenta e molhada e tenta assim descansar seus ossos e suas misérias tão evidentes, as quais o Poder Público minimiza a existência em flácidos discursos desprovidos da mais simples das comiserações e racionalidade. Impiedosos, os agentes do governo e algozes de seu povo tiram dos mais estapafúrdios silogismos a lógica dos imbecis. Dizem que o povo esfarrapado prefere a rua, escolhe sofrer a deslocar-se para um abrigo público...
Ora, ora, como se fosse natural do homem optar pelo sofrimento. Jamais! –- Homem, mulher, criança, velhos, inválidos, o que seja e que possa ser chamado de humano neste mundo faria tal opção, pois o desejo de autopreservação -- tendência de proteger a própria vida ou integridade -- é instintivo até mesmo entre os animais, da mais elementar das moneras até os organismos mais complexos. Ninguém, ser algum, coloca sua vida em risco, a não ser se for por uma causa extrema. E o que nos parece evidente, se aqueles que estão em situação de risco recusam o auxílio da Prefeitura, é que esse auxílio não corresponde exatamente ao que esperam para salvaguardar suas vidas. Algo está errado e muito errado, pois o espírito de sobrevivência desse povo em abandono nas esquinas não vê nas ações da Prefeitura elementos que lhes ofereça, com absoluta segurança, as condições necessárias para seguir vivendo e não apenas sobrevivendo.
Isso posto, caso ainda haja algo de humanidade naqueles que são responsáveis pelo destino dos mais necessitados; e ainda, considerando demonstrada a necessidade de mudança urgente no direcionamento das políticas públicas até agora adotadas em relação a essa população em situação de risco permanente, é que vimos suplicar, de toda nossa alma, que se faça a luz de imenso Sol nos corações desses agentes públicos. Pois, ficar com esse discursinho para lá de demagógico e de receita pronta, engendrado por quem não tem compromisso com a cidade, é condenar nossa gente à morte. E a isso, ao descarte deliberado de seres humanos, nunca vamos nos calar.
Definitivamente, a rua não é opção. A rua para esse povo é mais confiável do que a conversa mole de quem tem sua confortável cama para dormir todas as noites, mas que se nega a fazer um exame de consciência, por orgulho e vaidade; por falta de calor humano, experiência em lidar com gente, e boa vontade. (José Fernando Nandé)
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